34 MIL OU 3 MIL - Quantos missionários brasileiros realmente existem?
Por Jamierson Oliveira - Pastor e missionário da Igreja Batista da Família (SP), jornalista e editor da Bíblia Missionária de Estudo (SBB)e da Bíblia Apologética de Estudo (ICP).
Nos últimos meses uma notícia correu o mundo despertando um misto de surpresa, alegria, dúvidas e polêmica entre os líderes evangélicos de todas as igrejas e organizações missionárias. Noticiou-se em vários veículos da imprensa, mesmo os seculares, que a Igreja evangélica no Brasil é a segunda no mundo no envio de missionários, totalizando 34 mil obreiros enviados, atrás apenas dos EUA, que aparece no relatório com 127 mil obreiros.
Esses dados foram apresentados por Todd Johnson, competente pesquisador e diretor do Centro para Estudo Global do Cristianismo do Seminário Teológico Gordon-Conwell (EUA), o mesmo que edita o respeitado Atlas Global do Cristianismo,[i] na cerimônia em que se comemoravam os 200 anos do início de missões transculturais protestantes, com o envio de Adoniram Judson e sua esposa Ann Hasseltine (ler artigo POVOS, ed. 18, p. 12).
Confesso que também fui surpreendido. Por trabalhar com conscientização missionária nos últimos 15 anos, sempre me preocupei com esta questão, e na medida do possível procurei dar esse tipo de informação para as igrejas durante minhas palestras, principalmente utilizando dados do Atlas, da Sepal, da AMTB e de outras fontes sérias de pesquisas.[ii] O problema é que, até esse momento, o número que anunciávamos de missionários brasileiros era de apenas 3 mil obreiros, bem distante dos 34 mil anunciados.  
Procurei conversar com diversos líderes de organizações missionárias, com pastores de igrejas missionárias, pesquisadores e mesmo com obreiros comumente chamados de “missionários” e percebi claramente que o assunto é mais complicado do que parece e com muitas variáveis e controvérsias, sendo a principal questão a definição do termo “missionário”.
 
Trocando em miúdos
 
Por esta razão, antes de entrar em detalhes do polêmico relatório, que está mesmo exagerado (explicarei as razões mais adiante), quero me ater nesse ponto, sobre a melhor definição para o termo “missionário”. 
Sobre isso, Philip Jenkins, missiólogo e diretor do Instituto de Estudos Avançados da Religião (Universidade da Pensilvânia/EUA), representa bem a opinião de outros líderes mais conservadores, que preferem uma definição mais fechada e específica: “Em seus termos mais simples, missões é sobre a cultura, e não sobre geografia. Ao deixarmos de lado a dimensão transcultural de missões, despojamo-la de sua identidade essencial”, escreve o professor Philip. “Se todo mundo é um missionário, então ninguém é”, conclui ele em artigo sobre o número de missionários brasileiros.[iii] E ele não está sozinho nesta interpretação. Da mesma opinião compartilham autoridades de peso, como o pastor e teólogo Russell Shedd e a doutora e missióloga Bárbara Burns, entre outros com quem conversei.
Com uma opinião um pouco diferente, o missiólogo Timóteo Carriker, doutor em Filosofia (Ph.D.) em Estudos Interculturais na Escola de Estudos Interculturais do Seminário Teológico Fuller (EUA) e editor-geral da Bíblia Missionária de Estudos (SBB),[iv] afirma haver muitas definições, inclusive válidas, do termo “missionário”: “O mais simples e mais abrangente, e talvez o mais bíblico, é todo aquele que é enviado para anunciar as Boas-Novas. Neste sentido, inclui todos os crentes em Jesus! E por isso, acaba sendo uma definição não tão útil estrategicamente, embora, mas repito, por incrível que pareça talvez seja a definição mais bíblica”.
Também para o reverendo presbiteriano Carlos del Pino, doutor em Teologia Prática com ênfase em Hermenêutica e Missão da Universidad Pontificia de Salamanca, Espanha, há quase uma divinização do aspecto transcultural de missões na igreja brasileira: “Levar a mensagem do evangelho é uma dimensão essencial da fé e da espiritualidade cristã. Nesse sentido, toda igreja, em seu permanente estado de missão, deve encontrar no ser humano, qualquer que seja, em qualquer situação em que se encontre e em qualquer lugar do mundo, o seu campo missionário mais concreto”.
Particularmente, também sempre tive a impressão de que há em nosso meio uma supervalorização do caráter transcultural de missões, em detrimento de outros níveis do empreendimento missionário da Igreja.
Nos dias em que estive escrevendo este artigo, passei pela Praça da Sé (São Paulo), palco de diversos evangelistas itinerantes,[v] o que me fez pensar se esses obreiros também não estão em missão urbana. Participei do 8° Fórum de Ciências Bíblicas, no Museu da Bíblia, em São Paulo, e vi a apresentação do Projeto “Luz na Amazônia”,[vi] conduzido pela SBB, e pensei se aqueles obreiros ali também não são missionários junto aos ribeirinhos. Pensei também naqueles que estão em outras nações, evangelizando imigrantes brasileiros; naqueles que trabalham com pessoas com necessidades especiais (surdos, mudos, cegos, etc.); com adeptos de seitas em nossas cidades; enfim. São todos esses indignos do título “missionário” por causa desse aspecto cultural/étnico restrito?
Até porque “o que é uma cultura” precisa ser debatido. Obviamente, um obreiro dentro de uma tribo indígena na floresta amazônica ou na África está em uma cultura étnica, e por definição é um missionário transcultural. Mas e um missionário brasileiro, por exemplo, em Tóquio ou Madri, duas das cidades mais cosmopolitas, modernas e multirraciais do mundo, trabalhando com japoneses e/ou espanhóis urbanos? Quem é mais transcultural e, portanto, mais missionário que o outro? O que está numa tribo indígena primitiva ou esse da metrópole? Difícil fazer esse juízo de valor!
No início da década de 80 a ênfase era a Janela 10/40, logo depois se enfatizou uma lista com mais de 13 mil povos não alcançados, número que, com o passar dos anos, foi bem enxugado, falando-se hoje de pouco mais de 2 mil povos. E para alguns especialistas esse número é ainda menor. Isso sem entrarmos no mérito de que o termo “missionário” surgiu apenas no século 15, e também no mérito do que é um povo, uma vez que muitas etnias nem existem mais, outras surgiram mais recentemente e a maioria está bem misturada.
Por estas e outras razões, acho injusto a definição de “missionário” apenas pelo critério cultural/étnico. Acabo preferindo a máxima de Jesus sobre pregar o evangelho a toda criatura, independentemente da etnia ou fronteira que tenhamos de ultrapassar.
 
Quebrando paradigmas
 
Não estou ignorando missões transculturais (leia-se étnica), acho-a válida e inclusive considero-a estratégica e uma prioridade. Entendo e estudo a questão dos povos não alcançados e entendo que a Igreja é responsável pela evangelização de todos eles. Como disse Oswald Smith, “teria alguém o direito de ouvir o evangelho duas vezes, quando há tantos no mundo que não ouviram uma vez sequer?”.
Mas pense comigo: se apenas o obreiro na esfera transcultural é legítimo e deve ser contabilizado como missionário, por que falamos de missões urbanas? Por que pregamos sobre Atos 1.8 – “Jerusalém”, “Judia” e “Samaria” – como conceito metodológico e estratégico de missões e evangelismo uma vez que quem está pregando o evangelho às subculturas das nossas cidades – sertanejos, ribeirinhos, pobres, prostitutas, presidiários, drogados, adeptos de seitas, entre outras “tribos metropolitanas” não alcançadas – não são missionários por definição?
Temos de pensar que mesmo aquele obreiro que está em outro país, trabalhando com imigrantes brasileiros, não  está absolutamente isolado daquela cultura. Nem ele, nem as pessoas (seus conterrâneos) alvo da sua missão. Sempre há uma interação, e nacionais também acabam sendo alcançados dentro desse processo.
Senão, o que dizer de Jesus? O máximo que Ele fez, no sentido transcultural, foi ir a Samaria, Cafarnaum (Jo 4) e pouco contato teve com gentios, com algumas exceções, como o caso da mulher siro-fenícia e do centurião romano (Mc 7). Mesmo Paulo, o maior exemplo bíblico de missionário transcultural, só estava fazendo missões quando pregava aos gentios? Pois sabemos que ele buscava os judeus nas sinagogas para lhes apresentar o Cristo de Deus (1 Co 1).
 
Colocando os pingos nos “is”
 
Com base nisso, penso que a melhor proposta é reforçarmos o próprio sentido etimológico do termo (gr. Apostéllo, “o enviado”) com a velha e boa fórmula de Atos 1.8. Ou seja, para não generalizar tanto, e incluir 100% dos crentes nesta categoria (que é legítimo, como já vimos), estrategicamente, para ajudar na organização do estudo de missões, são “missionários” especificamente aqueles assim classificados:
 
§  Nível 1 / Jerusalém – crentes enviados oficialmente pelas suas igrejas locais para alcançar pessoas na própria cidade, desenvolvendo o ministério junto a demandas específicas, tais como surdos, sectários, moradores de rua, drogados, presidiários, etc. Um exemplo prático desse tipo de missionário são os obreiros do projeto batista “Cristolândia”,[vii] que atuam na chamada Cracolândia, no centro de São Paulo.
 
§  Nível 2 / Judeia – crentes enviados para regiões mais distantes, tais como desafios rurais, povoados ribeirinhos, sertanejos, etc. Esse conceito passa pelo aspecto geográfico e tem leve variação cultural. Um exemplo são os missionários da Juvep no sertão brasileiro e os da MEAP[viii] e da SBB, que atuam entre caiçaras e ribeirinhos.
 
§  Nível 3 / Samaria – crentes enviados para pregação do evangelho e plantação de igrejas em outras culturas em território nacional, como estrangeiros, ciganos, quilombolas. Nessa categoria estariam também os missionários em outras nações, atuando com imigrantes do país de origem. O exemplo nesse caso vem do projeto “Amigos dos ciganos”, que visa a evangelização dos quase um milhão de ciganos das etnias Calon e Rom.[ix]
 
§  Nível 4 / Confins da Terra – obreiros enviados para outras nações e tribos, em processo de aculturação (língua, moradia, costumes, etc.). Ainda nessa categoria estariam os missionários brasileiros entre tribos (nações) indígenas na Amazônia. Os exemplos desse modelo missionário são dispensáveis, por serem óbvios.
 
Voltando aos números do relatório do CEGC
Por esses critérios, nosso número de missionários evangélicos, mesmo não sendo os 34 mil divulgados, também não são apenas os 3 mil obreiros até hoje divulgados.
Em primeiro lugar, queremos deixar registrados aqui alguns pontos importantes:
 
·A estatística apresentada está mesmo absurdamente dilatada. O motivo é que ela não foi fruto de pesquisas realizadas junto a igrejas e organizações cristãs brasileiras. O CEGC apenas fez uma estimativa da nossa força missionária, baseada na média mundial de envio de missionários por cada milhão de cristãos, o que é um critério pouco preciso ou científico.
·De acordo com outros pesquisadores respeitados, como Patrick Johnstone, que editou o manual de Intercessão Mundial, por critérios mais técnicos nem mesmo os EUA possuem 127 mil missionários. Estudos indicam uma força em torno de 30 mil.
·Como foi admitido pelo próprio Todd, dentro desses 34 mil missionários brasileiros também foram somados missionários católicos. Consultei os principais órgãos gestores de missões ligados à CNBB e todos concordam que há em torno de 2 mil missionários católicos, sem distinção.
·Outro problema não considerado pelo CEGC é que há missionários transculturais filiados (parceria de sustento) a várias igrejas diferentes, e cada uma delas informa separadamente que este obreiro é seu missionário, inchando assim os números.
·Mesmo nos exemplos mais organizados e confiáveis, como é o caso dos batistas da Convenção Brasileira, que, por meio da sua secretaria JMM,[x] listam 612 missionários, estes não estão classificados em transculturais e nacionais.
·Outro exemplo para complicar ainda mais essa pesquisa vem da maior denominação do Brasil, a Assembleia de Deus. A secretaria de missões[xi] da principal convenção dessa denominação lista apenas 512 missionários. Que além de também não estarem classificados, não representam unanimidade nem mesmo dentro dos campos filiados à CGADB. Existem milhares de igrejas, desta ou de outras convenções, com centenas de missionários, transculturais ou não, sem cadastro junto à SENAMI (veja artigo na página 58, seção Vitrine,).
 
Diante de todas estas variáveis, como fazer essa conta? Não sabemos, justamente por falta de uma pesquisa exaustiva. No entanto, precisamos levar em conta o crescimento do evangelho no Brasil na última década e a multiplicação de igrejas independentes, na sua maioria não organizadas com banco de dados, cadastros centralizados, nem filiadas às principais convenções, conselhos e entidades de classe. Também precisamos considerar os missionários nos cinco níveis classificatórios propostos. Arrisco falar em mais de 15 mil missionários brasileiros, dos quais em torno de 6 mil seriam literalmente transculturais.
Precisamos de um trabalho sério, profundo e amplo. Pior do que não saber desses dados é fazermos previsões “evangelásticas”, gerando um clima de “já ganhou” quando na verdade há muito a fazer, ou ficarmos divulgando dados pessimistas, criando um ar de quase terrorismo, não admitindo boas notícias no contexto missionário.
Felizmente, diante do problema, há um projeto em andamento junto à SEPAL e AMTB,  para conhecer melhor essa realidade.
Se você é pastor de uma igreja independente, agente missionário, secretário de missões ou trabalha em alguma organização missionária, pedimos que envie dados confiáveis sobre seus obreiros transculturais para a AMTB: silastostes@gmail.com.


[ii] A SEPAL – Servindo Pastores e Líderes é a mais importante organização evangélica no Brasil que conduz um programa sério de pesquisa do meio evangélico brasileiro (www.sepal.org.br). A AMTB – Associação de Missões Transculturais Brasileiras é a organização missionária que filia todas as agências missionárias do Brasil, denominacionais e interdenominacionais. (www.amtb.org.br).
[iv] A Bíblia Missionária de Estudo é um projeto inédito no mundo, envolvendo os principais missiólogos brasileiros e outros estrangeiros, com lançamento previsto em 2013 pela SBB.
[v] Admito uma reserva para o trabalho e comportamento de alguns, que mais atrapalham do que ajudam. Mas conheço gente séria que já ganhou muitas almas para Jesus.
[vi] Conheça pelo site da SBB, uma das maiores agências missionárias do mundo (http://www.sbb.org.br).
[vii] Pesquisar no site da JMN (www.jmn.org.b).
[viii] Pesquisar no site da Juvep (www.juvep.com.br) e Meap (www.meap.org.br).
[ix] Pesquisar no blog da MACi (www.amigosdosciganos.blogspot.com.br).
[x] JMM – Junta de Missões Mundiais (www.jmm.org.br).
[xi] SENAMI – Secretaria Nacional de Missões (www.senami.com.br). 



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